segunda-feira, 12 de maio de 2025

Trechos do capítulo “Gibraltar pela manhã" - Egito, Eça de Queiroz

Comprei este livro no sebo ano passado por indicação de uma pessoa (que não faço ideia de quem seja), mas que comentou que era um livro belíssimo, interessante e raro. Não lembro quanto paguei, mas valeu muito a pena. Esta edição que tenho aqui é portuguesa, de Lisboa, e é de 1945 (80 anos!).

Estava aqui na prateleira em cima da mesa e a peguei despretensiosamente para dar uma folheada já que estou tendo a matéria de História da África na faculdade. Já posso dizer que a beleza material do livro faz jus à beleza dos próprios escritos e é justamente por esta beleza que decidi escrever essas notas aqui (o livro tem 80 anos então não vai dar para escrever nele e por isso preciso externalizar minhas impressões já que só assim retenho melhor o que li). 

São notas de viagem que o autor português do século XIX fez em uma viagem de 2 meses, entre outubro de 1869 e janeiro de 1870, pela costa portuguesa e espanhola, pela ilha de Malta e, finalmente, pelo Egito.

Apreciem essa beleza comigo :)

Trechos de "Gibraltar pela manhã"

Quarta-feira - Outubro

[...]

O ar do Outono amarelecia e despojava levemente todo aquele povo de árvores. Passávamos por diante de cottages, de jardins, de pomares, e sempre, através dos ramos, para além das casas, entre as ramagens ou no entrelaçamento dos troncos, luzia, azul como uma pupila humana, a água infinita do Mediterrâneo.

[...]

Nada há igual à sensação de se caminhar assim entre arvoredos, vendo sempre reluzir o fino azul da água. Descansámos um momento num jardim cheio duma doçura infinita. Toda a sorte de árvores, de ramos delgados, se entrelaçam, se prendem e limitam o horizonte, deixando-o entrever apenas, sereno e azulado, para além das suas ramagens. E aquilo, ali, um centro suave, longe do mundo, estreito e ao mesmo tempo ilimitado, onde a vida e a sensação se espiritualizam e se confundem com o alto pensamento vital das coisas. A vida, o ruído, os soldados, os uniformes vermelhos, as trombetas, os véus das mouras – nada ali chega: uma muralha de árvores, de relvas de plantas, isola aquele lugar de contemplação. Só se vê o mar, o céu azul, as montanhas, tudo quanto é sereno e inefável. Nada da vida material ali cativa a alma. As finas sensações delicadas, as percepções inteligentes, florescem, envolvem o espírito. Senta-se a gente, e olha, e contempla: não tem ideias, nem observações, nem crítica – mas apenas uma vida inerte, tão divinamente passiva como a vida das coisas.

O mar, o céu, os montes, a luz, penetram-nos, vivem em nós, embalam-se e 6 resplandecem na nossa alma. Sente-se que aquela região deve ser habitada por espíritos. Pensa-se apenas em coisas leves, onduladas, transparentes: em linhas puras, em sensações simples – e a nós, homens inquietos e nervosos, corroídos pelas aflições da realidade e pelas dores do trabalho, a primeira ideia que nos vem é a de esquecer, ficar ali esperando a vida, como a esperavam as antigas almas dos poemas de Homero nas serenas e nubladas regiões inferiores! Ali, se o homem pensasse em construir, só lhe lembraria a linha pura, a reta suavíssima ou a lenta curva toda aberta ao dia e à luz. Se o homem pensasse em soltar a voz, fá-lo-ia cantando – e parece que todo o pensamento humano deveria ter naquelas paragens a modulação natural dum verso de Virgílio. Ali, as coisas imensas têm a perfeição das coisas delicadas: o mar lembra uma pervinca (1), o céu uma ametista. Aquela região é a pátria das almas. 

Imagem aérea de Gibraltar


(1) A cor azul pervinca e a flor que recebe o mesmo nome.

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