quarta-feira, 16 de julho de 2025

Resenha: Questões de Moral e Educação de Émile Boutroux | ideias da educação moderna, moralidade grega e surgimento da ideia de pólis

Despretensiosamente comprei esse livrinho no Mosteiro no mês passado.

O título me chamou atenção e quando dei uma folheada no sumário logo percebi que seria de grande valia para os meus estudos. Inclusive, eu gravei um pequeno vlog desse dia em que visitei o Mosteiro e está disponível aqui no blog.

Agora falando sobre a obra: é relativamente curta, possui 149 páginas nessa minha edição (não sei se existe outra em português) da editora Kírion. Editora essa que, diga-se de passagem, publica obras interessantíssimas, mas que me decepciona um pouco quanto à encadernação dos livros. Eu não sou de fazer estripulias com meus livros, já que leio sempre apoiada na mesa, mas mesmo assim os livros descolam com facilidade. A qualidade das folhas é ótima, mas a encadernação realmente fica a desejar. De qualquer forma, os conteúdos dos livros que tenho da editora são bem valiosos. 

O primeiro capítulo/conferência intitulado Os três tipos de moral foi deveras interessante e proveitoso. O subtópico sobre a moral helênica foi o que mais me gerou interesse já que é o que eu venho estudando com mais afinco nos últimos tempos. As demais partes do livro, confesso, não me geraram entusiasmo, tanto que ao final da leitura eu só queria terminar logo. 

O autor segue uma linha de pensamento, da qual eu não sei nomear e que parece bem comum na segunda metade do século XIX, em que os pensadores adotam uma postura de reverência quanto à cultura ocidental clássica, mas que, ao mesmo tempo, parecem se escorar em uma mentalidade completamente laica e liberal. Não acho que seja desproposital, ainda mais considerando que o autor é francês. Essa consideração surgiu para mim logo nas primeiras páginas da Introdução, onde o autor não esconde suas preferências e ideias sobre educação:

O melhor que o educador pode fazer é ensinar aquilo que é efetivamente objeto de nossas meditações na vida real. Ele irá reunir as mais belas e sólidas expressões da consciência moral e, a exemplo do homem que age e vive no seio da sociedade, procurará conciliá-las. Ele compreenderá que a cidade que bastava aos gregos não é mais suficiente para os modernos; que estes vêem também coisas boas em si mesmas na família, na fraternidade humana, na ciência, na justiça, no respeito à consciência, na liberdade, no trabalho, na igualdade; e irá persuadir os espíritos de que a melhor conduta é aquela que, entre muitos pontos de vista diversos, concilia o maior número de interesses, produzindo o menor número de vítimas*. Ele irá rejeitar a idéia pouco prática do absoluto. Todas as obras do homem comportam algum defeito. Pretender manter apenas as que fossem boas sob todos os aspectos seria condená-las todas. *utilitarismo* 

À primeira vista esse trecho parece inofensivo, e realmente será se você partir do pressuposto de que a educação moderna é efetiva, mas se analisarmos tais afirmações com uma lupa iremos logo perceber que a carga liberal aqui é intensa. As ideias de fraternidade, laicidade e ausência de conceitos absolutos são o "puro suco" da mentalidade moderna ocidental pós Revolução Francesa. Confesso que essa frase sobre rejeição do absoluto me causa arrepios. Um professor do sistema de ensino atual vê, cotidianamente, o que essa ideia provoca nas consciências em formação dos educandos. Educar sem ter em vista um fim é perda de tempo, desperdício de vida e recursos. Talvez seja o maior problema da educação na modernidade.

Falando assim até parece que a minha leitura foi em vão, mas nunca é. Logo no final da introdução o autor nos surpreende com uma das melhores frases da obra ao escrever: "Que diferença entre o interesse e a eficácia de um ensino em que se tratam as coisas como palavras, e um ensino em que, sob as palavras, buscam-se as coisas!". 

Agora, gostaria de me deter com mais afinco na parte que comentei anteriormente sobre a moralidade helênica. Caso alguém ainda esteja lendo essa resenha até esse ponto (😅) acho que seria legal comentar mais uma vez que venho estudando (ou pelo menos tentando) sobre a História das Ideias na Grécia Antiga ou, como costuma aparecer por aí, as origens do pensamento ocidental. Tudo começou quando li a Ilíada e Odisseia. Desde então, venho lendo, escrevendo e refletindo sobre a temática e, mais precisamente, no campo da Educação. Neste ponto que entra o livro da vez. Ainda na introdução, o autor afirma que o intuito dos escritos é tatear as ideias constituintes do pensamento ocidental. Vale dizer que o livro é super introdutório e só apresenta conceitos gerais mesmo.

Muito me interessou quando li que ele iria apresentar as características dos principais tipos de perfeição nos sistemas morais já que é o justamente o que venho tentando estudar ultimamente: para um grego, o que era ser perfeito?

Ele começa com uma breve introdução à origem da moral que nasce na Grécia com Sócrates. A moralidade helênica começa a surgir quando a religião deixa de ser a forma predominante de entendimento da realidade, ou seja, quando a filosofia surge. É importante deixar claro que aquela oposição dicotômica que nos é apresentada no Ensino Básico entre razão e mito não é tão clara e bem definida quanto parece, já que a própria filosofia se utiliza dos mitos e explicações religiosas para exemplificar e estabelecer conceitos. É claro que existe uma diferença entre os dois conceitos, mas tal diferença não é tão antagonizante como nos fizeram crer. O Mircea Eliade fala sobre essa questão em sua obra "Mito e Realidade" que, aliás, já tem resenha aqui no blog também.

O Boutroux fala sobre algo que muito me chama atenção na história da Grécia que é o momento em que a mitologia começa a ser questionada e até mesmo ironizada pelos filósofos helenos que passam a enxergar uma certa imoralidade por parte dos deuses gregos. Eu nunca li Xenófanes, mas é a segunda vez que me deparo com ele quando o assunto é questionamento dos mitos. Pode ser que em algum momento eu venha a lê-lo diretamente. Sobre a motivação para o questionamento dos mitos, o autor fala brevemente de forma muito abreviada sobre o assunto. Senti falta de uma explicação. De qualquer forma, fica claro que, aos poucos, a religião passa a se enfraquecer. O homem passa a sentir que as explicações fantásticas para a realidade não poderiam suprir, por completo, a sede de ordenação e esclarecimento da realidade que a natureza humana possui. 

O descobrimento dessa ordenação da realidade parece ser crucial para o entendimento das transformações na Grécia. Voltando à Sócrates, o autor comenta sobre como o filosofo foi fundamental para o descobrimento da existência da natureza humana. Outro autor que vem sendo referência nos meus estudos também comenta sobre essa questão ao escrever que "a tendência do espírito grego para a clara apreensão das leis do real, tendência patente em todas as esferas da vida - pensamento, linguagem, ação e todas as formas de arte -, radica-se nessa concepção do ser como estrutura natural, amadurecida, originária e orgânica" (Werner Jaeger em Paideia, p. 9).

Essa questão é tão fundamental que logo em seguida o autor já nos apresenta à questão da formação da ideia de pólis. É interessante pensar nisso, pois imagino que assim como eu, você também tenha tido aquela aula sobre Grécia Antiga na escola onde o professor comenta sobre os gregos se organizarem em cidades-estados, em pólis independentes entre si e tal... pois é, acontece que o buraco é MUITO mais profundo. Da maneira como nos apresentam somos levados a crer que as cidades surgiram na Grécia, o que não faz sentido quando sabemos o mínimo sobre História Antiga. O que me parece surgir na Grécia é, na verdade, o entendimento da necessidade de ordenação das sociedades, entendimento esse que surge quando eles começam a perceber a ordenação da realidade tanto na esfera micro quanto macro. O homem, animal político e ser ordenado por natureza, não poderia viver em um ambiente que não correspondesse a esse ordenamento interno nato. Daqui podemos compreender como, na Antiguidade e na Idade Média, os homens enxergavam as instituições e as leis como geradas naturalmente pelos homens e não como fatores esmagadores das liberdades humanas como querem os modernos: 

não era como pensavam os gregos: eles viam na cidade uma instituição fundada, sem dúvida, na natureza, mas realizada pela inteligência, pela reflexão e pela engenhosidade humanas. A cidade era uma obra de arte, a obra de arte por excelência.

E o que é a cidade? Qual o seu princípio? A cidade é essencialmente uma harmonia: é a ordem inteligente que substitui a desordem natural; é o equilíbrio estabelecido entre as diversas classes de homens que representam as aptidões e necessidades diversas da natureza humana. A ideia moral nela manifestada é a ideia de comedimento, ordem e harmonia. É, portanto, a faculdade de conceber e realizar a harmonia que o grego descobre em sua alma, quando se volta para si mesmo (trechos da página 32).

 Pretendo continuar esboçando o assunto em uma parte II para essa resenha. Até lá!


Nenhum comentário:

Postar um comentário