quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

Resenha: O Idiota de Fiódor Dostoiévski

Depois de 829 páginas e 2 meses e meio finalizei o maior livro que li até hoje, mas isso não importa muito não.

Só queria deixar registrado que: eu fiquei com muita vontade de ler este livro durante um ano inteiro e quando finalmente pude comprá-lo, fui com muita sede ao pote para poder ler. Mas, aconteceu que as 829 páginas se tornaram mais longas do que já são e, consequentemente, minha leitura se estendeu por longos 2 meses e meio. Eu não estava esperando que isso fosse acontecer e acabei me frustrando um pouco.

Este foi o meu primeiro calhamaço do Dostô e russo também. Eu já havia lido obras menores do autor e a minha preferida continua sendo Memórias do Subsolo que, aliás, já comentei brevemente por aqui também. Claramente não recomendaria O Idiota caso você esteja querendo começar a ler Doistoiévski. Acredito que Noites Brancas ou Gente Pobre sejam boas portas de entrada, mas O Idiota definitivamente não entra nesta lista (na minha opinião).

Isso porque o ritmo é lentíssimo e, por vezes, quase imóvel. A quantidade de personagens e visitas à casa de terceiros parecia interminável, tanto que procurei por ajuda para conseguir entender as relações entre os 350 personagens (sem contar os nomes russos que pelo amor de Deus) e encontrei um mapa dos personagens no Reddit que me ajudou bastante!

Mas eu não quero ficar só reclamando. O livro tem sim seus altos e baixos, sendo que as partes altas da narrativa são bem memoráveis. 

Em O Idiota, somos apresentados a Míchkin, nosso protagonista, que após longos anos de reabilitação nas montanhas verdejantes da Suíça, volta à Rússia, sua terra natal. Acontece que Míchkin, ou o Idiota, recebeu tal apelido por conta de seu comportamento peculiar já que era bonzinho demais (com o decorrer da narrativa nos questionamos: a bondade é fruto do estado epilético de Míchkin ou não?). Ao chegar na Rússia, Míchkin é apresentado, aos poucos, à rede de personagens que acompanhamos na longa trama. O Príncipe, como também é chamado, se choca com a realidade de decadência moral da qual, até então, não tinha tanto contato. Conhecemos outros personagens significativos para Míchkin, como Nástassia e Agláia, que acabam por formar um triângulo amoroso com Míchkin, e Rogójin, um homem extremamente soturno e misterioso, que também compartilha de um mesmo interesse com o Príncipe. Interesse este que, de certa forma, levará ambos à ruína. 

O enredo, à primeira vista, pode ser tido como simples. Mas conforme os capítulos vão passando, somos imersos em uma narrativa caótica, recheada de discussões altamente filosóficas (marca registrada do Dostoiévski, aliás). Em muitos momentos consegui enxergar conexões entre esta obra e Memórias do Subsolo que parece fornecer uma sustentação psicológica para várias obras do autor.

Não conseguiria esmiuçar muitas partes aqui até porque, como disse, foi o maior livro que já li até hoje e é um baita tijolo. Por isso, gostaria de destacar algumas partes memoráveis durante a minha experiência de leitura.

A primeira delas se encontra logo nas primeiras páginas onde acompanhamos Míchkin narrando uma quase execução que presenciou na França. A carga emocional que tal narração carrega é impressionante. Neste momento, consegui encontrar nas entrelinhas uma grande conexão com Memórias do Subsolo, como comentei ali em cima: aqui, Dostoiévski traz, novamente, uma discussão acerca da consciência, seu peso e sobre como a consciência de algo pode se tornar uma doença. Neste caso, Míchkin narra a dor na consciência de alguém que sabe que a morte se aproxima:

Há uma sentença; e toda a medonha tortura jaz no fato de que não há, certamente, meios de escapar. E não há, no mundo, tortura maior do que esta.

Outra parte marcante e chocante é a narração do ataque epilético de Míchkin. Simplesmente UAU. Torna-se ainda mais impressionante quando recordamos que Dostoiévski também era epilético e que, neste caso, ele estava narrando algo totalmente familiar a ele mesmo. Este capítulo foi, sem sombra de dúvidas, um dos pontos altos do livro para mim e DIGO MAIS: uma das coisas mais bem escritas que já li. Eu só consigo tecer elogios ao Dostô. 

Acompanhamos os momentos antecedentes ao ataque e a descrição dos sintomas: confusão, dissociação, tontura, adrenalina alta, paranoia e a alta percepção de sua autoconsciência são alguns dos estados mentais descritos magistralmente pelo Dostoiévski. Percebam que o assunto da consciência vem à tona mais uma vez.

Também gostaria de lembrar da citação de uma pintura intitulada O Corpo do Cristo morto na Tumba (1520-1522) do alemão Hans Holbein:


Uma das minhas coisas preferidas nos livros é quando o autor cita outros livros ou obras de arte. Isso aconteceu muito em Jane Eyre, por exemplo. Aqui, em O Idiota, o Dostô faz referência a esta obra que ele viu pessoalmente em sua passagem pela Suíça. Agora, enquanto escrevo esta resenha, percebo o quão conveniente foi tal citação já que ambas obras de arte compartilham características entre si: austeridade, crueza e certa melancolia. 
Creio que, via de regra, os pintores que pintam Cristo na cruz ou depois de descido dela timbram em manter uma extraordinária beleza no Seu rosto. Esforçam-se por preservar essa beleza mesmo em Suas mais tenebrosas agonias. No quadro de Rogójin (a pintura de Holbein) não havia o menor vestígio dessa beleza. (...) Evidencia o bem o cadáver dum homem, um ex-homem, a natureza dum ser que acabou. (...)
Palavras do personagem Ippólit, o representante do niilismo ateu aqui na história.

Personagem este que, durante umas 50 páginas, nos surpreende com um longo discurso que precede uma das cenas mais chocantes do livro. O Ippólit é mais uma das manifestações do arquétipo do homem do subsolo na literatura do Dostoiévski: a doença terminal que o acomete o faz questionar a supremacia da realidade em detrimento da vontade humana e isso o faz questionar o porquê de sua própria vida. Por meio dele somos apresentados à visão materialista perante a morte. 

E para finalizar as citações por aqui não posso deixar de falar do final perturbador do livro. Na verdade, não posso falar nada além disso para não revelar o que acontece, mas posso dizer que o final faz o livro valer bastante à pena. Queria saber como o pessoal da época do lançamento do capítulo reagiu haha, queria poder ver a reação da pessoas. Quanto a minha reação, posso dizer que tremi e suei. Sem exagero. Minhas pernas ficaram tremendo por uns 10 minutos. 

Enfim, esse é O Idiota. Um livro certamente memorável, mas sem apelo ao grande público (eu penso?). Não é uma obra que vá agradar a todos definitivamente. O ritmo, como disse anteriormente, é lento. Não espere por acontecimentos chocantes a cada capítulo ou ganchos que te fazem querer passar uma madrugada inteira lento. É uma história para ser lentamente degustada.

Para finalizar, deixo aqui alguns comentários sobre a minha edição:

Faz parte de um box de 2 livros (O Idiota e Memórias das Casas dos Mortos) da editora Nova Fronteira que comprei em outubro de 2024 na promoção por R$85,50. Em relação à qualidade: não há o que reclamar. Os livros são belíssimos, costurados, com capa dura, folhas texturizadas e e levemente amarelas. PORÉM, eis o grande porém: as notas são praticamente inexistentes, o que significa que muitos detalhes e referências passam despercebidas. Ah, e alguns trechos em francês se quer são traduzidos também. Neste quesito o box ficou a desejar. Das próximas vezes vou tentar ser mais paciente para guardar um dinheirinho a mais e poder comprar as edições de editora 34.

É isto! Ufa. Uma resenha grande para um GRANDE livro (nos dois sentidos). Até mais!
"É verdade, príncipe, que o senhor disse uma vez que a beleza salvaria o mundo?"

4 comentários:

  1. Me admira a sua persistência para lê-lo! Eu tenho que desenvolver mais essa prática, mas é tão bom quando a nossa mente faz ligações entre outras referências lidas ou assistidas não é?

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    1. Bom demais!!! Eu dou pulinhos quando isso acontece haha. Isso tem acontecido demais com livros e acho que é um indicativo de que as coisas estão fazendo sentido.

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  2. Lembro quando comecei a ler Memórias do Subsolo ano passado, quando pegava o ônibus para ir para a faculdade, basicamente fiz marcação em cada parte e diálogo ksksksks porque eu nunca me senti tão conectada com algo como Dostoiévski nesse livro. Infelizmente não consegui terminá-lo, mas ainda quero. E caso eu termine, não sei se vou para esse ou Noites Brancas. Queria arriscar os Irmãos Karamázov, mas acho que ainda não é o momento. ]

    Sua resenha, no entanto, me deu vontade de dar uma olhada em O Idiota. Mas eu me conheço e sei que vou postergar o máximo possível.

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    1. Dulceee, espero que você termine Memórias do Subsolo! Essa leitura ecoa na minha mente com frequência, sinto que preciso reler. E é o meu favorito do Dostô até agora.

      Sobre largar as leituras: acontece! Acredito que o importante é começar pelo que te gerar curiosidade.

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