domingo, 21 de julho de 2024

Impressões sobre o Purgatório de Dante Alighieri (diário de leitura)

Já no Paraíso, lembrei que ainda não havia escrito nada sobre a segunda parte da Divina Comédia, o Purgatório. Estou decepcionando a mim mesma já que eu esperava fazer registros constantes durante a minha leitura da D.C (esta é a minha forma carinhosa de chamar a Divina Comédia). O meu diário de leitura não tem sido tão diário assim.

Também percebi que eu devo começar a tomar notas durante as leituras e não somente no final. Não sei porquê não havia me tocado em relação a isso antes já que no final da leitura sempre fica algo para trás caso não anotemos. 

Enfim, eu levei um mês e alguns dias subindo o monte do Purgatório com o Dante e o Virgílio (e o Estácio, coitado, não vou esquecer dele). No Inferno a ordem é contrária a do Purgatório: lá, conforme descemos, os pecados são mais graves e as punições também. Aqui, as penitências e os pecados tornam-se mais brandos conforme subimos. Contudo, preciso deixar claro que, para mim, a subida não acompanhou a organização do monte e conforme fui chegando ao topo, ao Éden, a jornada foi se tornando mais árdua. Eu tive bastante dificuldade com a leitura de alguns cantos específicos por conta da linguagem poética. 


A matéria dos cantos em si não é um problema, mas a linguagem poética e a ordem inversa das orações têm sido uma verdadeira pedra no caminho. Mas tudo bem, vejo isso como uma oportunidade de aprender a ler melhor (coisa que eu preciso muito, aliás).

De cara, percebi muitas diferenças entre o Inferno e o Purgatório. Além das diferenças mais óbvias como a oposição entre trevas e luz ou desespero eterno e “paz esperada":
(...) Nesta linha, assim definia a obra poética na perspectiva da paz: «A Divina Comédia é poema da paz: lúgubre canto da paz perdida para sempre é o Inferno, suave canto da paz esperada é o Purgatório, epinício triunfal de paz eterna e plenamente possuída é o Paraíso».
também ficou bem perceptível a profundidade simbólica que enriquece o Purgatório com um vocabulário descritivo, metáforas com a natureza, com as cores e, com muita frequência, com as estrelas e os planetas.

Saímos de um território antes mapeado pelo guia do Dante, o Virgílio, para um território desconhecido repleto de novidades para ambos. Sentimos essa áurea misteriosa nos envolvendo na chegada ao Purgatório já que o cenário contribui para isso: um monte, possivelmente o mais alto da Terra, localizado em um lugar desconhecido em alto-mar onde o horizonte parece fundir-se com o Céu. Este é o Purgatório.

Aqui, aos poucos, vamos entendendo a dinâmica e as almas que compõem o Purgatório dantesco: em geral, muitas figuras conhecidas da época da obra e do próprio Dante. Em alguns momentos me senti um tanto quanto deslocada em meio a tantos nomes desconhecidos para mim. Ficava feliz quando aparecida uma alma conhecido por lá. 

Imagem deste site aqui.

Algo muito marcante para mim, foi o recuo do Virgílio em relação à primeira parte da obra. Muitas vezes sentimos certa melancolia por parte dele ao apreciar e observar aquilo que ele não pôde experimentar: a paz esperada reservada aos crentes na vida eterna. Cabe comentar aqui sobre algo interessante. A Divina Comédia é uma obra de literatura católica. O Dante ambienta toda a sua jornada em um universo mental, psicológico e espiritual onde o catolicismo fazia parte da vida de todos os homens. Já na Idade Média, a civilização ocidental atribuía um grande respeito e importância ao papel do Virgílio enquanto poeta. E sabemos que o Virgílio não era (e não é) o único pagão a receber honras. Hoje, a tradição católica, não exclui e até mesmo corrobora com a opinião de que muitos pagãos foram agraciados com centelhas da Verdade, os quais seriam os casos de Aristóteles e do próprio Virgílio. Na Divina Comédia, o Dante não trabalha com essa possibilidade já que estas figuras encontram-se no Limbo, privados eternamente da paz plenamente possuída.

Também acho importante dizer que o Dante não faz isso por questões doutrinárias. O fato de o Virgílio (que é tradicionalmente visto como um símbolo da razão e das virtudes naturais na Divina Comédia) não ter acesso ao Paraíso nos mostra que apenas com o uso desta razão natural e com o exercício das virtudes naturais o homem não consegue chegar plenamente a Deus e às verdades reveladas.

O próprio Virgílio comenta sobre a sua limitação no Canto VII do Purgatório (versos 22-36 na tradução do Cristiano Martins):

“Inteiro o abismo (1) percorri da dor", 
tornou-lhe, "para ser aqui chegado:
venho, impelido pelo sumo Amor (2).

Não por ação, mas por omissão (3), privado
estive desse sol (4) que vais buscando,
e já tarde demais me foi mostrado.

Em baixo, à orla do báratro nefando,
há um sítio em trevas (5), mas sem cruéis tormentos,
onde suspiros, só, se ouvem ressoando.

Para ele vão os párvulos (6), aos centos,
quando da cruz morte arrebatados,
antes de serem do pecado isentos.

Ali permaneci, junto aos frustrados
nas três virtudes santas (7), sem que ao vício 
porém se abandonassem, dominados.

(1) O inferno.
(2) Virgílio diz que chegou até ali, no Purgatório, por vontade divina.
(3) Em outra tradução: “Não o que fiz, mas o que não fiz"
(4) Deus.
(5) O Limbo, onde o Virgílio residia eternamente.
(6) Os párvulos seriam as crianças que morreram sem receber o batismo.
(7) As virtudes teologais: fé, esperança e caridade. Virgílio diz que estava onde ficam aqueles que seguiram as virtudes naturais e humanas, levando a vida com retidão.

Por fim, gostaria de comentar sobre uma oração/canto gregoriano que acabei conhecendo no Canto VIII: o Te Lucis ante terminum (antes que o dia acabe). Na verdade, eu já tinha visto essa oração em algum momento, mas não havia prestado atenção. É uma oração do século VII para pedir a proteção contra pesadelos.

Em português:

Antes que a luz desapareça, nós vos suplicamos, Criador de todas as coisas, que sejais, por vossa clemência, nosso protetor e nosso guarda. Longe de nós os sonhos e os fantasmas da noite. Reprimi o nosso inimigo, afim de que nada manche os nossos corpos. Concedei-nos esta graça, ó Pai misericordioso, ó Filho Unigênito que reinas com o Espiríto Consolador, por todos os séculos dos séculos. Amém.

Só mais uma coisinha...

Durante a leitura eu comecei a sentir muita curiosidade em relação à vida do Dante. Eu havia lido bem superficialmente sobre o assunto até que decidi ler o Vida de Dante, do Giovanni Boccaccio, que foi um dos primeiros a espalhar e conservar a palavra da Divina Comédia. O livro é bem curto, mas repleto de informações interessantes. Boccaccio se propôs a escrever uma espécie de biografia do Dante, mas o livro vai um pouco além ao explorar outros assuntos que surgiam pelo assunto, como a origem dos poetas nas sociedades. Achei engraçado o fato do Boccaccio rasgar elogios ao Dante. Parece uma biografia escrita por um fã hahaha (coisa que o Boccaccio realmente era).


Textos que li como apoio:

1. Carta Apostólica Candor Lucis Aeterna do Papa Francisco reservada ao VII Centenário da morte do Dante A;
2. Capítulo “O fim do mundo" do livro O Homem Eterno do G.K. Chesterton onde ele trata um pouco sobre a importância do Virgílio para a mentalidade ocidental.
3. Livro A vida de Dante do Giovanni Boccaccio.
4. Notas do “The Divine Comedy: Purgatory - Dorothy Sayers

Nos vemos no Paraíso.


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